domingo, 27 de março de 2022

Ary do Cavaco (Cláudio Vieira)

 
O CHARUTO DO ARY

Quem leu a coluna de ontem deve ter percebido o comentário feito por Celsinho de Andrade, compositor portelense, comparando os efeitos das empadinhas do Gibi, numa finalíssima de sambas-enredo na Mocidade, com um misterioso charuto que Ary do Cavaco usou para levar vantagem numa disputa na Portela.

Foi no ano de 1970.  A Portela tentaria o bicampeonato em 1971 com o enredo “Lapa em Três Tempos”, de Artur Pederneiras. Nas esquinas de Madureira, o samba da parceria formada por Waldir 59 e Candeia, defendido por Avelino (pai de Celsinho), era apontado como o grande favorito. Mas...

Nesse ponto da narrativa, Celsinho abre um parêntese importante: revela que a história foi contada por Waldir 59 e confirmada, tempos depois, pelo próprio Ary do Cavaco – que, surpreendentemente, chegou à quadra do Imperial, onde aconteceria a final, fumando um charuto.

O salão do Imperial Basket Club, na Estrada do Portela, 57, Madureira, estava lotado naquela noite. Não foram poucos os que se incomodaram com a fumaça do charuto do atrapalhado Ary, que jamais fumou em sua vida. Aos mais chegados, explicava que estava regressando do terreiro de Seu Sete da Lira, em Cavalcanti, onde se consultara com mãe Cacilda, que incorporava a entidade. Contou que precisava muito ganhar aquele concurso. E o famoso encantado, que será enredo da Grande Rio em abril, ensinou:

- Quando chegar lá, acende o charuto. Mas não bate a cinza. Deixa ela crescer, naturalmente. Depois, arrume um bom lugar e jogue a cinza na cabeça do adversário.

Ary seguiu as instruções à risca. Subiu ao mezanino do clube e ficou aguardando que os adversários passassem a caminho do palco. Jogou as cinzas sobre Waldir 59, Candeia e Avelino, que nem perceberam.

Coincidência ou não, deu tudo errado para os favoritos naquela noite. O cantor errou a letra, a bateria atravessou, foi um desastre. E o samba de Ary, em parceria com Rubens, acabou vencendo com sobras.

Abre a janela formosa mulher
Cantava o poeta trovador
Abre a janela formosa mulher
Da velha Lapa que passou

Aviso aos navegantes: se, no Carnaval de abril, encontrarem alguém na Avenida fumando charuto e equilibrando a cinza...

sábado, 19 de março de 2022

sábado, 12 de março de 2022

quinta-feira, 10 de março de 2022

Waldir 59 (Cláudio Vieira)


59 VEZES WALDIR


Parceiro de Candeia e vencedor de oito sambas-enredos na Portela, Waldir de Souza, o Waldir 59, tinha um jeito diferente de encarar a vida. Em noite de ensaio técnico no Sambódromo, perguntamos qual foi o seu desfile inesquecível. Os olhos do compositor e diretor de harmonia viajaram pelas arquibancadas do Setor 1, procurando a Av. Presidente Vargas.

Pensou um pouco e respondeu ao pé da letra, sem dar conta que o “inesquecível”, no caso, se referia ao desfile que mais alegrias lhe dera:

- Foi em 1973, quando apresentamos o enredo “Pasárgada, o amigo do Rei”. A Escola estava imensa. Havia mais de dez mil componentes, acredito. Lembro que a bateria já se aproximava da Central do Brasil e a Wilma Nascimento, nossa porta-bandeira, ainda estava lááá na Candelária...

Essa distância representa quatro ou cinco quarteirões e outros tantos pontos de ônibus. Na época, Waldir teve que sair correndo no meio da multidão para pegar a porta-bandeira. O esforço foi tão grande que o diretor de harmonia desmaiou no meio do caminho, em pleno desfile, sendo socorrido por uma ambulância do Souza Aguiar:

- Só acordei quando já estava no hospital, entrando no soro. E arrematou: - Foi o meu desfile inesquecível. Nunca mais esqueci desse sufoco.

A entrevista havia terminado, mas Waldir nos surpreendeu, novamente:

- Ué, vocês não vão querer saber a razão do meu apelido? – estranhou.

Waldir tinha razão. Qual seria a origem do 59? Orgulhoso, respondeu:

- 59 era o final da minha matrícula no serviço público; era também a dezena final da minha identidade; era o número da minha casa; era o final da placa do meu carro; era o número do telefone da minha casa; em 59, ganhei a disputa de samba e a Portela foi campeã... Um dia, fui registrar uma ocorrência na polícia e resolvi contar essas coincidências para o delegado. Ele ficou sério e me disse: “Então, de hoje em diante, o senhor será o Waldir 59.” E acabou pegando.

A propósito: apesar do gigantismo, a Portela ainda ficou em 4º lugar no Carnaval de 1973.

Waldir faleceu em 2015, aos 88 anos, com insuficiência respiratória.

terça-feira, 1 de março de 2022

PORTELA 1970 (Cláudio Vieira)

UM CLÁSSICO

QUE VIROU LENDA



Lendas e mistérios não são privilégios da Amazônia. O samba que levou a Portela ao título de 1970 e é considerado um dos mais bonitos de sua história, também carrega uma boa dose de folclore. Seus três autores: Sebastião Vitorino Teixeira dos Santos, o Catoni, e Waltenir. O trio venceu mais dois concursos de sambas-enredos na Águia: em 1967, com Tal dia é o batizado; e, em 1977, com Festa da Aclamação.

O taxista aposentado Dinckel Martins, o Jabolô, revela que, apesar das diversas regravações, jamais ganhou um centavo com o samba da Amazônia. “O que pingou, dei pro Catoni. Naquela época, ele estava em dificuldades.  Assinei uma procuração e deixei a minha parte pra ele. Se ajudou em alguma coisa, não sei” – comentava.

Jabolô não escondia que Catoni era o mais inspirado da parceria. Depois de receberem a sinopse do enredo criado por Clóvis Bornay e Arnaldo Pederneiras, os três compositores fizeram diversos encontros na residência do taxista, em Irajá. Outras aconteceram no bar Salada Tropical, em frente a estação de Madureira, e outras mais no Aero Willys com o qual Jabolô trabalhava na praça. “Dos três, a situação menos ruim era a minha; já que os dois parceiros estavam desempregados” – lembrava.

Nesta avenida colorida/
A Portela faz seu carnaval/
Lendas e mistérios da Amazônia/
Cantamos neste samba original/
Dizem que os astros se amaram/ 
E não puderam se casar/
A lua apaixonada chorou tanto/ 
Que do seu pranto nasceu o Rio-Mar…

Naquela época, não havia patrocinadores para financiar prospectos. Jabolô teve que fazer extras no volante para conseguir a verba dos panfletos: “Eu atravessava um qualquer para um amigo que trabalhava na gráfica da Prefeitura. Ele confeccionava os papéis lá dentro e, no final das contas, ficava bem barato. Rodou mais de 40 mil letras do samba...” – confessava sobre o apoio involuntário da municipalidade.

Catoni vivia mais em Jacarepaguá, onde morava, do que em Madureira. Fez do poeta Joaquim Domingues, também já falecido, o seu mentor. Joaquim era dono de uma funerária no Largo do Tanque. Nos fundos da loja, no silêncio dos caixões, recebia o discípulo para analisar os progressos de Lendas e Mistérios da Amazônia.

E dizem mais…/ 
Jaçanã/ 
Bela como uma flor/
Certa manhã viu ser proibido o seu amor/
Pois um valente guerreiro/
Por ela se apaixonou/ 
Foi sacrificado pela ira do Pajé/
E na Vitória-Régia/
Ela se transformou…

O jornalista Leo Montenegro (falecido em julho de 2003), criador da coluna O Avesso da Vida, em O Dia, testemunhou diversos encontros entre Catoni e Joaquim – que dedicava o seu talento aos sambas de empolgação para o bloco Bafo de Bode (que daria origem à Renascer), ali das redondezas. Leo era amigo dos dois sambistas e também residia em Jacarepaguá, na Freguesia.

Quando chegava a primavera/
A estação das flores/ 
Havia uma festa de amores/
Era a tradição das amazonas/
Mulheres guerreiras/
Aquele ambiente de alegria/
Terminava ao raiar do dia…

Num desses convescotes, regados a cerveja, é claro, o portelense Leo também teve a oportunidade de dar a sua contribuição. Conta que os autores estavam aflitos com um buraco que havia entre as primeira e segunda estrofes. O intervalo poderia gerar o atravessamento do samba. O jornalista, então, recorreu a um macete de redação, sugerindo que fizessem um encadeamento entre os dois períodos, usando a expressão “E dizem mais...” O intervalo foi preenchido sem que a poesia da letra perdesse a fluência. Era o toque que faltava.

Ô esquindô lá lá/ 
Ô esquindô lê lê/
Olha só quem vem lá/
É o saci pererê!

(Portela 1970 – a Tabajara do Samba - Lendas e Mistérios da Amazônia)